Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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quinta-feira, junho 10, 2004
 
O Feiticeiro dos Discos
Ser vendedor não é apenas uma questão de talento. Algumas pessoas conseguem elevar isso a um estado de arte, ainda mais quando mexem com nossas paixões pop.

Entrei naquela loja só porque vi um cd deveras interessante em promoção na vitrine. Me dirigi ao vendedor, um negro baixinho, de dentes afastados, que logo abriu um enorme sorriso para me atender. Começou a falar muito bem da promoção, que o dono não fazia idéia das pérolas que estava vendendo a preço de banana, mas não era ele quem ia alertá-lo. O próprio vendedor se dizia alucinado com as coisas que ele estava descobrindo na promoção e, a partir do meu pedido inicial, foi puxando uma corda de referências e me oferecendo mais e mais cds.

Foi aí que reconheci o cara. Ele trabalha vendendo discos e fitas desde a década de 80, é uma dessas figurinhas tarimbadas nos bastidores de um cenário artístico-cultural. No caso dele, é uma relíquia do rock baiano. Já trabalhou nas lojas underground de discos do centro da cidade, hoje extintas, e desde então seu trabalho não é apenas ganha-pão, mas uma arte também. Agora está num shopping center fazendo seu pequeno show.

Tomando como ponto de partida o que você pede, ele lhe mostra outras coisas, mas não é aleatoriamente, como se você pedisse um Sepultura e ele começasse a lhe empurrar qualquer cd de trash metal. Não. O sujeito tem feeling. Parece que ele adivinha o que você gosta e, a partir de influências, período histórico e outras semelhanças sonoras, o que ele mostra é justamente o que você, se tivesse grana, gostaria de comprar. Ele tem sensibilidade e encontra semelhanças sutis, sendo capaz de inferir a afinidade entre uma banda pesada e uma pop, entre um vocal grave masculino e a voz sibilante de uma cantora. É incrível!

Para tornar tudo ainda mais interessante, enquanto ele lhe apresenta os sons, vai contando a história do artista, da composição daquela música, fatos curiosos na biografia da banda... O cara é uma mega-enciclopédia hipertextual ambulante! A essa altura do campeonato, você já tem na mão uns 5 discos e não faz idéia de como seria possível não comprar somente um deles.

O sujeito não só vende e gosta muito, ele vivencia música. Por isso, além de ter informação de sobra ? e saber muito bem o que fazer com ela ? ele tem uma ligação afetiva muito grande com as músicas. Por isso, enquanto você ouve o som e as histórias, eventualmente ele conta trechos de sua própria vida, dando um toque ainda mais pitoresco à sua visita.

Então ele diz que tal música ele oferecia para uma garota por quem era apaixonado, que tais discos ele teve de vender durante uma crise financeira, que tal melodia o fazia chorar embaixo da cama, que tal artista ele ouvia no bar com os amigos bebendo vinho e cantando junto... A impressão que dá é de que ele não quer apenas lhe vender discos, mas quer se tornar seu amigo a partir de afinidades musicais e isso parece sincero. Lembra um pouco aqueles personagens doces e neuróticos de Alta Fidelidade.

Não é preciso dizer que você se sente muito acolhido e bem servido enquanto cliente, pois o cara está ali lhe oferecendo toda atenção do mundo. Miraculosamente, ele está fazendo isso com mais um ou dois clientes ao mesmo tempo! É como se ele se multiplicasse pela loja, estando em todos os lugares ao mesmo tempo.

Como dinheiro não é uma coisa fácil, chega uma hora que você tem de se decidir pelo que vai levar e pôr um ponto final na sua compra. É triste, é chato, porque você acabou de ouvir coisas bárbaras do artista que você já curtia e agora está com vontade de levar também uns três álbuns maravilhosos de gente que você não tinha ouvido até então. A música ecoa em sua cabeça e é linda. Você está enfeitiçado! Das duas uma: ou você se endivida até os fios de cabelo (o que não é aconselhável, acredite), ou sai dali com a promessa de que vai voltar em breve. E volta!