Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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terça-feira, julho 15, 2003
 
Crônica de um deserto

Quando saí de sua casa, pouco importava se estava chovendo ou fazia calor, naquela noite o céu estava mesmo partindo sobre a minha cabeça. Fui para minha casa pensando em tudo o que você me disse quando pôs um fim em nós duas e nada parecia fazer muito sentido, na verdade, eu não podia mesmo acreditar. Ainda podia sentir seu corpo em minhas mãos, a maciez dos seus seios, seus cabelos cacheados roçando em meu nariz, a suavidade de sua voz me engasgando a cada palavra. Andava a passos lentos - pelo menos mais lentos do que costumo andar - mas duros, como se a cada passada quisesse perfurar o chão com a meia-sola de minha bota. Nada que passava pelos meus olhos se fixava, porque meu pensamento fixo era em você e sua partida.

Eu tinha a exata noção de que o sangue sumira de meu corpo, indo sabe-se lá para onde. Eu queria muito, muito vomitar, tinha a vista embaçada, mas eu também não conseguia sequer pensar em parar. No meio do caminho, o que me interrompeu foi o repentino som de uma cigarra. No meio de suas palavras ele irrompeu tão forte, que parei e olhei para uma árvore. Pela primeira vez pude ver uma cigarra no meio de seu canto, ali, grudada no tronco daquela árvore. Olhei fixamente para ela e tive ódio do seu zumbido. Fiquei olhando e odiando, até que ela zumbiu mais agudo, tão agudo que seu abdome explodiu. Uma gosma quente espirrou dela em meu rosto. Quente não, porque insetos não têm sangue quente. Era minha pele que estava fria demais, sem sangue, sem cor.

Sem limpar meu assassinato, retomei meu caminho de cabeça baixa. Eu tinha certeza que meu ódio havia matado aquela cigarra e agora queria também que ele lhe matasse. O impecilho era o fato de não conseguir odiá-la. Não me era possível querer mal à mulher que eu mais amo na vida. Pensava em seus cabelos, seus olhos, suas mãos ainda em meus seios. Imaginei vir uma lágrima em meus olhos, mas nem mesmo chorar eu consegui. Somente enfiei as mãos mais fundo nos bolsos da calça, procurando em mim mesma algum calor, mas nada. A vontade de desmaiar não passava, nem a compreensão me atingia. Senti sede. E falta do meu sangue. E senti ressecar o sangue da cigarra sobre minha bochecha esquerda.

Ao chegar em casa, atirei minha mochila para um lado do sofá e meu corpo para ao outro. Fitei o teto e foi como se a gravidade pesasse umas cem vezes mais, porque senti como se a pele do meu rosto tentasse correr para o chão. Lembrei então de pegar um copo d'água. Naquele momento, seu abandono me fez sentir como se eu nunca mais fosse menstruar, como se meu peito jamais pudesse dar leite, como se aquela água não me bastasse. Bebi toda a água da geladeira e o resto do filtro também. Mesmo de barriga estufada, minha sede não cessava. Bebi a cerveja e o refrigerante que sobravam, em seguida, nem o leite restou. Finalmente consegui vomitar, mas nem a vontade de me esvair, nem a secura que eu sentia por dentro acabavam. "Onde está o meu sangue?", eu me perguntava entre suas palavras de adeus que ecoavam em minha mente. Doía demais em meu pensamento que uma mulher pudesse ser cruel assim.

A essa altura eu já sentia em minha pele a textura de um papel envelhecido. Molhei meu rosto, meus braços, mas nada disso serviu para devolver minha textura humana. Tive medo de me desintegrar como areia. Não havia hidratantes em casa, nunca gostei disso, e você levou os seus quando foi embora e eu nem havia percebido ainda. E onde estava o meu sangue? Achei que você tinha levado ele consigo também. Esta idéia me deixou assustada. A perspectiva de você ter levado embora minha vida junto com você era demais até para mim. Olhando no espelho, o aspecto esverdeado na minha pele, as manchas pretas sob os olhos, o roxo nos lábios, tudo me dava a certeza de que este crime você cometera. "Não, não é possível", eu pensei, entre as frases que me mandavam embora de uma vez por todas de sua vida.

Fui à cozinha e tomei uma faca para procurar nos punhos o paradeiro do meu sangue. Um, dois, três... cinco, sete... onze cortes do lado esquerdo me davam um sinal que me parecia muito pouco. Uma mulher do meu tamanho não deve sangrar só isso. Busquei no lado direito também - foi difícil porque eu já não tinha força na mão. O sangue, finalmente encontrei. Passei um pouco dele no rosto, espalhei pelos braços. Desse jeito sinto minha pele voltar ao normal. A sede também vai se esgotando aos poucos. Oh, ainda bem! Finalmente consigo desmaiar...

quarta-feira, julho 09, 2003
 
Assepsia

Quando entrei naquela casa, foi difícil conter meu espanto. Eu, um raro exemplar da espécie urbana que não tem alergia respiratória, comecei a espirrar. Isso era o mínimo. Era inacreditável que alguém pudesse viver ali, entre ensaios de escombros, poeira, umidade e insetos, obviamente. Mais inacreditável ainda era o fato de eu não estar indo visitar a moradia de um indigente qualquer, mas de um colega meu.

Dei um pulo na casa dessa figura, um desses pulos que a gente dá em casa de novos conhecidos para conhecê-los melhor. Foi bastante embaraçoso porque ele apontava seus cômodos com um certo orgulho (o lar de um homem é seu castelo, dizem) e eu me esforçava para não deixar minha expressão se distorcer numa cara de nojo. O lugar era pouco menos que uma ruína e eu nunca tinha conhecido ninguém que tivesse habitação tão insalubre. A experiência inovadora e o aspecto da casa deixavam minha respiração em suspenso, como se uma surpresa houvesse se espatifado em meu rosto.

Não demorou muito para o sarcasmo vir correndo de lá do fundo do meu cérebro, usar minha língua como trampolim e se atirar em frases provocativas. Quando me mostrou a cama, coberta com um grande plástico azul, perguntei se ele fazia xixi na cama. Ele explicou que aquilo era para proteger o colchão da sujeira que caía do telhado velho. “Você tem certeza de que isso aqui não está condenado pela defesa pública?”, eu disse olhando para os buraquinhos do chão, que deixavam ver o andar inferior. Quando ele respondeu que não, quis escutar um tom de brincadeira, mas ele falava sério.

Então ele me contou que aquilo ali era uma casa invadida, como muitas outras daquela região ainda esquecida pelo governo, que deveria ganhar prêmio de cenografia, pelo excelente trabalho de maquilagem na cidade. Suas palavras não escondiam um certo orgulho de ser outsider, cada detalhe era como uma crítica ao meu modo de vida limpinho, seguro e estável. Ele é artista e nessa profissão, marcas bizarras na história de vida enriquecem um currículo. O que vale é o percalço, o abandono da normalidade, o mergulho no caos que fortalece e dá criatividade... Então tá.

Sentei num sofá que me pareceu razoável, mesmo assim, sentei bem na ponta. Parecia que o pó pairava no ar e vinha se depositar nas minhas roupas, na minha pele, nos meus cabelos lavados. Eu tinha reservas até mesmo quanto a encostar nas paredes. Acho que não era só impressão, meus espirros podiam comprovar isso. Conversamos mais um pouco sobre a casa – contive minha ironia antes que uma conversa sem agressividade se tornasse inevitável – sobre a vida, sobre o trabalho. Num determinado momento, ele me mostrou uma aranha de uns quinze centímetros de diâmetro, que não o deixava mentir sobre a precariedade da casa. Posso jurar que ele até sorriu para o bicho.

Na hora de sairmos, ele pegou seus tênis, deu umas batidinhas no chão, enquanto falava da importância de não calçar sapatos com baratas, escorpiões e outras pestes. Já íamos descendo as escadas quando num lampejo, desses flashs de memória que vêm do nada como um alerta, lembrei que eu havia saído de casa sem passar desodorante. Sem constrangimento, porque já tinha visto bastante naquela casa para ter timidez em falar de qualquer assunto sobre higiene, lhe pedi um pouco de desodorante emprestado. Arregalando os olhos como um ponto de exclamação, no meio de seu espanto, ele disse:

- Eu não acredito!