Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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terça-feira, junho 10, 2003
 
Vivendo e aprendendo - Parte II

No dia seguinte, bem cedo, retornei à oficina do "seu" Antônio. O velho ainda não tinha chegado e o porteiro olhava para mim com ares de zombaria. Dessa vez eu portava a câmera comigo e não ia querer ficar circulando pelo centro com meu bem valioso. Esperei até ficar de saco cheio e ir tomar um café na esquina. Ao retornar, perguntei ao tal porteiro se o velhinho já tinha chegado e ele respondeu que sim como quem se indigna porque eu teria insinuado que o horário de atendimento do Antônio era horário de vagabundo. Eu realmente não entendi. Abanei a cabeça e subi.

- Bom dia, "seu" Antônio. A peça não me serviu.
- Espero que hoje você tenha trazido a câmera - o velho retrucou em tom de ataque e eu logo lhe entreguei a máquina.
- Ahhhh... É da paraguaia. Por que você não me disse logo que era da paraguaia?

A ironia do velhinho me teria feito bufar de raiva não fosse a humilhação de descobrir que meu equipamento era falsificado e nem eu sabia. Ele foi se meter lá dentro entre as peças velhas para catar aquela que serviria para minha máquina. Apesar de toda decadência do lugar, pensei naquela busca como a história de Cinderella e seu sapatinho de cristal. O velho experimentava pecinha por pecinha, até ver qual delas serviria. Fiquei lá emburrado esperando, enquanto outros clientes chegavam. Eram sujeitos mal-cheirosos que falavam alto, a quem "seu" Antônio respondia com uma cordial gritaria vinda do fundo da oficina. Cada sílaba em volume estourado melindrava meus ouvidos e me fazia encolher mais na cadeira.

Já passava da hora do almoço quando o velho me gritou. Cheguei a me animar à espera do veredito. Com a cara ainda mais amarrada e agora suado e de cabelos despenteados, "seu" Antônio me disse que não achou a tal peça, devolvendo o dinheiro, não sem antes direcionar pequenas maldições a mim pela sua perda de tempo. Por força do hábito da educação, agradeci por seus serviços e comecei a me preparar para sair. Enquanto punha minha câmera na bolsa, entra na oficina a loira gigantesca da foto na parede.

A mulher tinha seios enormes, muito redondos, no limite do mamilo de saltarem para fora do decote pronunciado. Usava também um short muito curto, que permitia ver as polpas de sua bunda e - toque de extrema vulgaridade - um par de sandálias de salto. Sinuosa e rebolativa, ela atravessou a oficina, pegou o rosto do velhinho entre suas mãos enormes de unhas vermelhas pontiagudas, e então colou seus lábios de batom - também vermelho encarnado - nos lábios do "seu" Antônio. Em seguida, ela praticamente espremeu a cara sorridente do velhinho entre seus peitos e chamou-o de "meu amor".

A cena toda me deixou muito chocado, mas o que mais causava estranhamento era a mulher em si. Óbvio que ela atraía atenção, era grande demais para ser verdade. Me desliguei um pouco do que acabava de ver para prestar atenção na criatura. Seus pés e mãos eram muito fortes, também não era possível negar que aquilo em seu pescoço era um pomo-de-adão. O velhinho é casado com um travesti!, ri por dentro de mim mesmo, saindo da oficina me sentindo vingado por imaginar "seu" Antônio como um ingênuo enganado, que alguém como ele não merecia amor melhor do que daquele ser bizarramente híbrido.

Meu sorriso de depravada reprovação e a sensação de vingança foram apenas breves. Logo caí em mim que era óbvio que o velho sabia do que se tratava sua companheira e era muito feliz daquele jeito mesmo, enquanto eu me revelava o mais patético dos preconceituosos que, ainda por cima, não sabe nem mesmo identificar seu próprio equipamento de trabalho.