Vivendo e aprendendo - Parte I
Quando perdi aquela pecinha da minha câmera fotográfica, não cheguei a entrar em desespero, mas sabia que seria uma dor-de-cabeça para repor. Não queria recorrer a uma oficina autorizada, que cobra uma fortuna por qualquer bobagem e ainda arruma outros defeitos inexistentes ou dos quais você não havia nem se dado conta. Por outro lado, sabia também que a máquina não era tão jovem assim, e por isso mesmo seria difícil encontrar peças avulsas.
Depois de empurrar o problema com a barriga por certo tempo, tomei coragem e fui a uma loja. Estava com uma graninha sobrando, seria fácil resolver o problema. Não foi. Rodei por diversas lojas e ninguém respondia rápido à minha procura, até que me recomendaram ir ao “seu” Antônio, dono de uma dessas oficinazinhas obscuras de fundo-de-quintal em prédios comerciais antigos no centro da cidade. Não gostava muito da idéia, mas fui mesmo assim.
O edifício não foi complicado de encontrar. Era bem ordinário e escuro, como eu esperava. Me deu uma sensação de estar fazendo algo que beirava à ilegalidade ao entrar ali. Procurei por “seu” Antônio e o porteiro barrigudo e suarento disse facilmente onde era a sala. Subi. Paredes manchadas e cheiro de mofo no corredor inteiro. Me deparei com a porta aberta do cubículo.
- Bom dia. Seu Antônio?
Quem vem me atender é um velhinho bastante branco, olhos muito azuis, cabelinho liso já sem nenhum traço de cor. Óculos de aro e lente grossos, camiseta regata branca, cueca samba-canção e, nos pés, um par de pantufas de couro claro muito gastas. Sua voz é grosseira, demonstra uma grande má-vontade em atender aos clientes.
Explico a ele meu problema, digo qual o modelo da câmera.
- É da original ou é a paraguaia?
- Como assim?
- A original tem o corpo todo de metal, a paraguaia é de plástico.
Paraguaia como sinônimo de falsificada. Expressão que não ouvia desde o fim dos anos 80! Numa espécie de instinto de preservação da honra de meu equipamento, respondi que era original. Claro! Comprei no exterior, custou caro. Sim, era original.
- Trouxe a câmera?
- Não.
- Como você quer comprar uma peça sem trazer o corpo da câmera?
A cara e a voz do velhinho eram de uma impaciência nítida. Ele me olhava como uma criatura mimada, pela qual sentia um grande desprezo e cada deslize meu era como a já esperada prova da minha incompetência. Palavra por palavra, eu sentia um pouco de vergonha. Cada vez mais, a superioridade grosseira daquele senhor mal vestido e truculento se agigantava e me deixava ainda mais puto.
Ele foi remexer lá nos bagulhos dele em busca da tal peça. Me senti aliviado por não precisar dialogar com o velho por alguns instantes e me peguei olhando detalhes do seu “escritório”. Aos meus olhos, o lugar era uma tremenda bagunça, somente aquela cabeça velha e meio maluca para se entender ali dentro. De repente, me prendi às coisas coladas nas paredes premoldadas que isolavam, junto com a portinhola, a parte de atendimento dos clientes daquela que seria o interior da oficina.
De um lado, um monte de cartões de fotógrafos, desses que registram casamento-batizado-primeiracomunhão-festadequinzeanos-formaturadocolegial-formatura-enterro-etc. Todos amarelados de velhos, mal grafados, mal diagramados, muito feios. Piores talvez, só os nomes que levavam. Na outra parede, era uma espécie de álbum de família. Umas fotos do tal velhinho com várias pessoas, alguns retratos, provavelmente feitos por clientes. Numa das imagens, ele aparece abraçado com uma loura alta, corpulenta, uma mulher gigantesca, provavelmente sua filha.
- Aqui, achei. Se não servir, você vai ter que trocar parte do corpo dela.
Dei uma olhada rápida na peça, me dei por satisfeito. Perguntei quanto era e achei uma pechincha o preço, que era menos da metade do que eu previa gastar. Saí da oficina me sentindo mais leve por ter resolvido um problema que foi arrastado por tanto tempo. O que eu não podia saber é que estava enganado. O diabo da peça simplesmente não me servia! Resmunguei com um certo ódio, teria de recorrer aos favores do velhinho novamente.
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to be continued...