Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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quinta-feira, outubro 31, 2002
 
Ouvindo cantos de araras

Temperatura altíssima, que nem o par de ventiladores ligados em força-total davam jeito de aliviar. As partes do corpo que se encostavam poderiam entrar em combustão espontânea a qualquer momento. A umidade nas axilas a fazia sentir nojo de si mesma. Paloma trabalhava o dia inteiro e, naquela cidade, tinha certeza de que era difícil parecer uma pessoa apresentável a qualquer hora do dia. Em Manaus, até quando chovia, a água já caía morna grudando na pele. Paloma sonhava com o Pólo Norte, tão desesperador era o calor que sentia.

Nas raras vezes em que entrava alguma brisa através da janela do seu escritório, pensava em montar um altar aos deuses do vento que normalmente andavam esquecidos daquele ponto de pedra erguido no meio da floresta amazônica. Todos os dias se arrependia de ter mudado para uma cidade dita mais tranquila e de clima mais gostoso. E também odiava aquelas festas de boi-bumbá. Quer dizer, no início, achava tudo bonito e exuberante, diferente da fria cidade argentina de onde viera - e hoje até prefere não lembrar o nome.

Vidinha estranha que ela decidiu ter! Sorria, esquecendo do calor e lembrando da família cheia de dedos e irritações porque a filha querida tinha ido morar no meio do mato selvagem brasileiro. Era assim que pensavam em Manaus e seu povo de traços índios. Paloma pensava naquele lugar infernalmente quente e úmido como sinônimo de liberdade. Uma gota de suor furando o cerco da sobrancelha e invadindo seus olhos de maneira picante interrompe seus pensamentos. Paloma volta a se concentrar no sol escaldante da terra e cada parte de seu corpo que gruda no material sintético da cadeira.

segunda-feira, outubro 21, 2002
 
Presa ao chão pela língua de lagartos gigantes, sinto pétalas cor-de-rosa translúcidas pousarem sobre meu rosto. Caem do céu como chuva e têm um cheiro adocicado. Fecho os olhos para sentir a suavidade em minha pele e abro a boca para ver o que acontece. Sinto o gosto de sua língua! Então olho para o lado e o que vejo sou eu mesma e o amante de olhos castanhos fazendo sexo vestidos com roupas de metal, como cavaleiros medievais. Estamos deitados sobre um parque verde e deserto. O sexo é estranho, ele parece estar assustado. Fecho os olhos novamente.

Enterrada nas pétalas, não consigo sufocar. Meu corpo é todo feito de almofadas brancas onde quero que alguém se atire e corte meus pulsos para beber de minha carne. Quero virar o chão de onde essas flores cujo formato desconheço brotam. Tudo que sei do existir são essas pétalas perfumadas e enlouquecedoras e a língua destes lagartos raspando na minha pele. O chão está quente como asfalto molhado, vejo um céu azul sem sofrimento. Não consigo respirar debaixo d'água e este é o meu maior problema por hora. Os lagartos irão embora - não são dragões de Comodo devoradores, são pequenininhos na verdade, por isso não lhes temo.

Sento e levanto num instante. Caminho por uma varanda que não sei de onde é. Quero correr para casa, mas as coxas dóem. Fui envenenada pelo sangue dos lagartos - a pessoa errada chupou os meus pulsos. Não quero dizer nada, só verborragia desvairada, por isso caminho nua entre as paredes de cor clara. Meu corpo de almofadas com elas se confunde. Vou entrar numa dessas pilastras e nunca mais sair. Não quero mais olhar para a cara de certos amantes e morro de medo de lagartos gigantes.

sexta-feira, outubro 04, 2002
 
BUSCA FRENÉTICA
(29/08/2001)

O que começou bem de leve, com uma olhadela aqui, outra ali, levantando uns papéis, tornou-se uma busca frenética. Eu estava procurando um poema - ou algo assim - que certa vez escrevi para outro homem, um desconhecido, ainda na época em que eu era casada. Não sei bem o motivo – aliás, sei sim: de uns tempos para cá, passei a conhecê-lo e talvez chegue o momento em que eu possa lhe mostrar o tal texto. Enfim, resolvi procurar o papel ordinário, provavelmente jogado entre minhas outras centenas de papéis ordinários, que contém o manuscrito.

Pois então, eu ia trabalhar àquela hora do dia, mas a coisa se descontrolou. Quando dei por mim, estava eu descabelada no meio do quarto, revirando minhas coisas como se buscasse a mais rara das relíquias. No meio deste caminho, encontrava coisas que procurei em outros momentos e agora não me serviam mais, coisas aprazíveis e outras que me causaram calafrios, como fotos e cartas de meu ex.

A busca foi ficando ao mesmo tempo engraçada e desesperadora. Ao mesmo tempo em que eu encontrava coisas boas de um passado ainda mais distante, como cartas de amigos, textos que li nos primeiros anos da faculdade, algumas miudezas perdidas entre toneladas de papel e poeira, ia ficando cada vez mais fresca em minha memória a cena em que eu rasgava o manuscrito e jogava no lixo, julgando tê-lo passado para meus arquivos do computador.

Larguei o arquivo-vivo e voei para cima do teclado. Comecei uma revista virtual menos cansativa, porém mais desalentadora. Abri todos os meus arquivos pessoais e nenhum deles sequer remetia ao texto de encantamento pelo então desconhecido que povoava meus sonhos. Talvez eu tivesse me livrado do papel por causa do medo de ser descoberta em numa contemplação proibida. Ai, que arrependimento!

Voltei para a poeira. A busca aos poucos foi se tornando uma arrumação desesperada, minhas mãos lascando papéis com anotações desnecessárias, convites antigos, algumas memórias que não cabiam mais em minha vida. Mas a preocupação com a provável perda do poema me ardia de um jeito que eu não conseguia parar.

A manhã de trabalho se foi. O cenário do meu quarto era um arquivo dos horrores. Eu, no centro de monturos de papel, suada, tomada por uma frustração terrível. Perdi um dos meus mais belos textos, perdi uma manhã de trabalho e encontrei um passado doce que agora me faz falta.

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O Manuscrito
(02/02/2001)

Diabos! Eu sou suscetível à Beleza!

Ela vem e me toma, me embriaga toda, me tira os sentidos. Neste momento, estou pasma da Beleza. E eu a amo, amo como não deveria, que não fica bem amar somente a Beleza assim. Nesta hora, a Beleza são cachos de cabelos castanhos e olhos claros. Tem pele rosada e um corpo singelo. Parece um desses anjos idealizados... Mas me desperta de outros jeitos, numa paixão que nesta idade não fica nem bem querer. Uma paixão distante, toda olhos, fundada apenas na Beleza.

E graças a Deus que não me arrepiei quando a Beleza, nesta forma toda, me beijou a face. Estaria eu perdida então! Aquela visão, aquele movimento todo ia me levar e me deixar no embaraço de uma traiçoeira paixão pela Beleza.

Oh! Maldição! Por que a beleza, em toda sua glória, se manifesta assim “far away, so close”? É de verdade e não posso ou devo tocar. Na verdade, já lhe toquei a cintura nua... Desejos inconfessáveis! Temo que meus pensamentos me traiam através de meus olhos. Pobres olhos, esses meus, que me tornam tão suscetível...

A Beleza me inebria que me entristece, pois é fútil amar a Beleza assim. E eu a amo, confesso! Bebo-a toda com os olhos sobre aquele homem. Sua manifestação sobre ele me inspira palavras belas, que quero gritar, mas ninguém pode me ouvir. Não posso confessar assim, para outros ouvidos e olhos. Desejos inconfessáveis!

Mas, nesta noite, a Beleza distante beijou minha face. Ela usava cabelos castanhos cacheados, olhos claros e a pele rosada. E me tomou de assalto, arrebatou-me inteira. De tal modo, que assino esta confissão.

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