Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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quinta-feira, agosto 29, 2002
 
dOMinGo

Não vou escovar os dentes hoje. Pra que escovar os dentes se não vou mesmo ver ninguém. Meu gato gosta de cheirar minha boca suja, com cheiro de comidas velhas e a bebida de ontem. Meu gato é macio e está sempre à mão, vem cá, bichano! Hum... eu devo tirar aquele esqueleto de lagartixa ali atrás do móvel. Se já está nos ossinhos, é porque tá ali faz tempo. Como sou porco! Vejamos o que está passando na tevê. Sexo entre aranhas... desenho dos anos 80.... seriado. Vou deixar aqui, que é um bom seriado. Ah, eu gosto de gatos por isso, se viram sozinhos. Foi lá fazer o xixi dele, tranquilo, sem sujeira. Bom garoto! Deus abençoe este sofá, deus abençoe esta janela de onde é divertido ver as nuvens sem sair do lugar. Essa passagem profusa de azul e branco meio que................ me... . e..e.e..e..e..e amolece! Preciso regar essa planta que a mãe largou aqui. Acho que esse amarelo na ponta das folhas não deve ser bom sinal. Eu falei a ela que não sou bom de cuidar dessas coisas lerdas. E ela devia lembrar o que aconteceu com o aquário! Talvez eu esteja ficando com fome. Será que devo fazer uma extravagância e pedir uma pizza? Não... amanhã eu teria de correr para me penitenciar... De onde estou não dá pra ligar o rádio, droga. Funck! Porra, um banho até que me caía bem agora, mas acho que abaixando os braços dá para aguentar mais um pouquinho. Tv... TV... Ei, volta aqui, gato! E se eu pegar um livro pra ler? Hum...hum... aí eu ia dormir também. Cara, como essa minha unha do pé tá preta! Talvez fosse bom eu lavar de vez em AI! Ah... tá preta de machucada. Menos mal, daqui a pouco passa. Humpf! Vou telefonar para alguém. Aliás, não. Não quero falar com ninguém hoje. Ou tou precisando de uma luz para me agarrar e sair daqui? PÉÉÉN!!!! Deve ser alguém... acho que vou ficar quieto pra parecer que não tem ninguém em casa. Não vou escovar os dentes hoje!

terça-feira, agosto 20, 2002
 
Mulheres Demais

Estou aqui para falar dessas mulheres intrigantes, quase bruxas, poderosas, que amedrontam os homens com sua beleza e sua aura. Dessas que se tornam mitos, que queimam na fogueira dos boatos cruéis só porque não podem ser dominadas, ou porque não atendem à passividade que a maioria dos caras deseja do sexo frágil. Eu, como muitos homens, já odiei e padeci de algumas dessas criaturas maravilhosas. Sim, algumas delas são de fato perversas, é verdade, mas a maioria é apenas esfinge.

Sou um sujeito mediano, nem feio nem bonito, nem mais nem menos inteligente. Tive meus traumas adolescentes, alguns deles superados, outros mal-resolvidos. Foi justamente nesta época que conheci duas mulheres que jamais esqueci: Clara e Melissa. Na época, eram meninas mais que apenas meninas. Tinham um olhar diferente da maioria das garotas da nossa idade (17 anos), eram bonitas e mexiam com a imaginação dos homens independente da idade.

Clara, ao contrário do que o nome sugeria, foi uma das pessoas mais sinistras que já conheci. Algumas pessoas, inclusive, juravam de pés juntos que ela tinha pacto com o demônio e coisas do tipo. Hoje em dia, francamente, já não duvido. Era uma mulher lindíssima, fria e perversa apesar de ser tão jovem. Tinha por diversão brincar com as pessoas, seduzir homens e mulheres para usá-los ou apenas para testar o poder de seus encantos. Também gostava de fazer intrigas - destruiu amizades e, pode parecer bobagem, corações também. Não esqueço de seu sorriso - era algo de dar calafrios. Mesmo assim, me aproximei dela, em parte por medo, em parte por querer testar meus limites. Curiosamente, quase nos tornamos amigos, mas era uma pessoa em quem eu não confiava por um segundo sequer. A sensação era como se estivéssemos sempre à beira de um abismo, na iminência de ela me empurrar. E se o fizesse, seria sem culpa.

Nos afastamos e passamos alguns anos sem nos ver. Recentemente, a encontrei na rua e conversamos rapidamente. Assim que bati os olhos nela, percebi que havia perdido aquele brilho fascinante, tinha uma aparência cansada. Mas também não senti a pontada de medo que normalmente me tomava. Ela me pareceu mais serena, parecia que havia se tornado uma pessoa boa. Estava de mãos dadas com um homem que me apresentou como seu namorado. Um cara apático, talvez um ex-seminarista que tivesse tirado o diabo do couro dela, sei lá... Nos despedimos e estranhamente fiquei em paz por ela ter se tornado um pouco feia.

Já por Melissa, eu sinceramente me apaixonei, mas nunca pude admitir isso para mim mesmo. E diante dos meus amigos, transformava isso em pura raiva. Tinha raiva, porque ela era demais para mim, era uma mulher estupenda e não sabia se valorizar, se comportando como uma vadia. Eu me sentia ameaçado pela combinação de sua inteligência sensível dissimulada pela beleza e libertinagem. Ela deu ou se ofereceu para todos os caras do grupo com quem eu andava, menos para mim e isso me deixava puto. Também, eu era o único que a desafiava e desaprovava, justamente por me importar com ela. Os outros caras, além de brigarem entre si, só faziam aumentar o falatório a respeito dela, falando de seu envolvimento com drogas, bebida e o que faziam com ela na cama. Muitos relatavam até atos de abuso violento e troca de favores sexuais por um simples baseado.

Até hoje não sei direito o que é verdade a respeito dessa garota, só sei que de fato ela se drogava. Não sei nem ao certo o que ela usava. Só sei que de todo mal que atribuíam a Melissa, o pior que ela fazia era contra si mesma. Do mesmo jeito que ela apareceu em nossa turma, sumiu de repente. Soube que ela havia mudado de cidade, outros me disseram que ela andava doente e ainda houve quem dissesse que ela tinha caído de vez no alcoolismo. Nenhuma notícia boa, o que me leva a crer que seu destino realmente não foi dos melhores. Sei lá, no fundo eu ainda tenho a esperança de saber algo de bom sobre ela, ou encontrá-la bem e poder desfazer toda a imagem de antipatia que eu construí somente para ela. Seria tarde e mentiroso dizer que a amo, mas queria poder dizer algumas palavras que marcassem Melissa tanto quanto ela me marcou. E estaríamos quites.

domingo, agosto 18, 2002
 
Hora sem nome

Entrou na cozinha e apanhou um copo entre as baratas sobre a pia. Não se deu nem ao trabalho de passar uma água, pois já não tinha nojo das baratas de sua própria casa. Desistiu de lutar contra elas há alguns meses "elas sempre voltam mesmo" e acabou tomando-as como amigas. Tinha nojo, sim, das baratas dos outros. Apenas encheu o copo com a água da geladeira, que já não gelava o suficiente, sentou-se num banquinho. De cueca branca e camiseta, passou a mão nos cabelos longos e pretos tirando-os do rosto, suspirou e acendeu um cigarro. Deu então uma longa tragada e foi soltando a fumaça devagar, com os olhos fixos no nada, com a cabeça em direção ao teto. Tinha pensado em fazer um café, mas não tinha ânimo para todas as elaborações que a bebida quente lhe exigiriam. Ficou com a insipidez da água gelada mesmo.

Na pia a louça acumulada e imunda contavam o o que havia acontecido há cinco dias, ela pensou. Havia terminado o namoro de uma forma bem simples. Ele disse "eu gosto de você, mas...", era o fim ela sabia. Preferiu nem deixar ele concluir. Quando um não quer, dois terminam, ela sabia. Ficou triste, é verdade, mas o desleixo foi somente um exagero, um presságio. Eram duas da manhã quando ela acordou, como fazia normalmente, para trabalhar. Naquela madrugada ela recebeu, por e-mail, sua demissão. "E agora isso..."

Não brigaria mais com as baratas, fumaria cigarros até queimar as pontas dos dedos. Bebendo sua água como um drink, a lentidão fez o copo suar. Ficou ali parada observando a própria cozinha esculhambada mesmo sendo ela sozinha. "Sozinha." repetiu mentalmente para si mesma. Terminando o sétimo cigarro, coçou a cabeça num movimento rápido e desajeitado, quase infantil. Engoliu o último dedo de água e, como se tivesse sido tomada de assalto, mas sem alterar sua expressão, disse o que talvez tenham sido suas primeiras palavras nas últimas setenta e duas horas:

"E então? Qual é a boa dessa noite?"