Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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domingo, junho 23, 2002
 
Efemeridades

Enquanto se beijavam, sentiu as mãos dela se emaranharem nos seus cabelos cacheados abaixo das orelhas. Quando se olharam, ela sorriu um tanto sem jeito e disse "é a primeira vez que fico com um cara de cabelos mais longos que os meus..." Ele também riu. Não, ela não era a primeira menina de cabelo bem curtinho com quem ele ficava. Nem era a primeira que tomava, um tanto timidamente, a iniciativa de se aproximar dele. Também não era a primeira a elogiar seus olhos ou seu estilo de se vestir. Não era a primeira que parecia afobada no meio de um abraço. Nada naquela garota era inédito, nada havia nela de especial. Era apenas mais uma boca entre tantas que já haviam passado pela sua.

Estavam ali, desfrutando apenas algumas horas juntos, porque estavam sozinhos e não havia nada de melhor para fazer. E afinal de contas ele gostava de beijos... e do calor macio da pele das garotas. Era muito gostoso sentir nas mãos aquela textura aveludada, era o que realmente lhe dava prazer. O rosto daquela menina era desses bem lisos, sem marcas de espinhas ou coisas do tipo. Mas ela era como todas as outras em suas qualidades e defeitos. Não era a primeira que beijava lenta e profundamente, nem que passava as mãos com suavidade sobre seu corpo.

Falaram sobre sua carreira. Ele adorava este assunto. Era ator, se fascinava com as próprias histórias, dos palcos onde pisou, de pessoas que conheceu, dos sims e nãos que recebeu ao longo de sua estrada. Falava de seus personagens e de si mesmo como um personagem. Todas elas se interessavam por suas façanhas. Ou por qualquer outra coisa de que ele dissesse.

Pensou em lhe tocar os seios, mas desistiu. Estava cansado e pouco disposto a enfrentar sutilezas, a necessidade de fazer um caminho até lá. O tempo todo manteve as mãos na cintura dela, e no seu rosto, que era muito macio. Estava vivendo bem o momento, como sempre, mas também não via a hora de sair dali e não ter mais a necessidade de lembrar o nome daquela menina, cuja face desapareceria entre todas as outras e cujas sensações provocadas estariam apagadas com algumas horas de sono.

Logo que bateu a porta atrás de si, se deu conta de que ninguém deixava marcas em sua vida. Sentiu-se triste porque não tinha nenhuma lembrança concreta de amor, nada que lhe estremecesse a alma com uma simples evocação imaginária. Não pensava em nenhuma delas desse jeito quase febril. Sentiu se abrir num grande vazio e chegou a pensar em chorar.

Caminhando pela cozinha, espantou um bando de moscas sobre o pão doce em cima da mesa e foi tomar um banho antes de deitar-se.

quinta-feira, junho 20, 2002
 
Urbanóias

Diariamente nas grandes cidades, a imprevisibilidade do cotidiano assusta. São tantos os perigos destas selvas modernas, que a cada esquina temos uma prova de nossa humana vulnerabilidade. Há coisas terríveis para pensar a cada dia, pensamentos que assustam quando passam por nossas cabeças. Ou que nem sabemos que eles estão lá.

#1

Altivo das Dores é camelô. Todo dia acorda bem cedinho e monta sua banca no centro da cidade. Prefere ficar em lugares mais abertos, distante das portas e paredes das lojas, porque não quer ficar ostentando muita concorrência com elas. Vende bugingangas importadas e roupa íntima de mulher. Não entende nem de uma coisa nem de outra. Só sabe de montar e expor suas mercadorias, anunciá-las aos gritos e chamar os clientes de "freguês" ou "freguesa". Certo dia, chovia, então ele puxou sua bancada para perto daquela loja de departamentos. Debaixo da marquise, abrigaria a si e suas mercadorias da chuva. O que ninguém podia imaginar é que as estruturas de ferro e concreto daquela marquise recém pintada estavam frágeis. Um pouco de água... Altivo morreu na hora exata do desabamento. Seu corpo foi encontrado completamente estraçalhado entre pedras, ferros, radinhos de pilha e calçolas.

#2

22:30 - André voltava do estágio sonolento, sentado na janela de um dos últimos bancos do ônibus. Dia cansativo aquele, ainda bem que já estava acabando. Em poucos minutos chegaria em casa e teria paz. Tão absorto em seus pensamentos, nem reparou o sujeito mal-encarado que sentou-se ao seu lado."Fica quieto e me dá tudo que você tem", ele disse. André olhou indignado, disse um sonoro NÃO. nem teve tempo de reagir, só sentiu a dor profunda em sua barriga. O cara pegou sua carteira e, ameaçando os poucos passageiros do ônibus, desceu correndo. As pessoas foram acudir André. "Leva ao Hospital Geral!", disseram. Ele pensou na podridão do lugar, pediu pelo amor de deus que não, que ele tinha plano de saúde. Mas haviam levado sua carteira e todos os documentos. Duas semanas depois, André faleceu, vítima de uma infecção generalizada.

#3

Tudo que Angélica desejava depois de um dia inteiro de trabalho era aquele banho quente. Passou horas em pé atendendo peruas chatas que nunca se decidiam sobre o que comprar. Ela preferia estar do outro lado do balcão, mas vivia de raro luxo. Então tudo que tinha naquela noite era tornar-se limpa e perfumada para encontrar com seu noivo e trocar um pouco de carinho. Escolheu roupa, pensou nos brincos, perfume e sapatos. Tomou um banho demorado, cheio de cheiros cosméticos. Saiu do banheiro, foi para o quarto onde iria se secar e vestir-se. O som ligado alegrava o ambiente. Era um aparelho velho, de qualidade ruim e já com os fios remendados. Angélica, descalça, molhada e nua, caminha inadvertidamente pelo quarto. O fio desencapado e seu pé desprotegido e úmido são uma combinação fatal. A descarga retesou todos os seus músculos e ela caiu no chão sem vida.

#4

Júlia caminhava com suas amigas na volta da escola. Estava especialmente contente naquele dia em que entravam de férias. Além disso, seu coração adolescente estava às voltas com novo amor. Ela sorria e as outras duas meninas também. Vinham pela calçada fazendo planos, dizendo piadinhas. Era por volta de uma da tarde, o sol a pino e o intenso vai-vem de pessoas saindo para o almoço dava à cidade sua verdadeira dimensão urbana. O ritmo das meninas era outro, andavam com certa displicência. As pedras do calçamento no meio fio estavam meio soltas e Júlia tropeçou. Se desequilibrou e caiu no chão em direção à pista movimentada. No exato momento em que seu corpo atingiu o asfalto, um carro em alta velocidade esfacelou seu crânio, deixando marcas vermelhas de pneus por alguns metros.

sexta-feira, junho 14, 2002
 
Diabo de texto!

Começou a escrever um texto para destilar sua raiva, surrar o papel para não surrar as pessoas. Fez um parágrafo com uma generosa medida de ódio e outros sentimentos nada nobres. Já sentia que suas palavras não eram muito felizes, aquilo não iria para lugar nenhum, seria qualquer coisa óbvia para extravazar os males do dia anterior, mas não havia qualidade alguma. Mudou algumas expressões, trocou frases de lugar. Não adiantava. A morte de um unicórnio, uma terra apodrecendo em caos, olhares de de amantes se perdendo realmente não poderiam render nenhuma boa história original...Olhava o texto procurando uma saída que desembocasse em boa literatura. Nada. Começou a brincar na tela do computador, tentando melhores idéias. Não queria abandonar aquelas linhas, porque sua raiva estava ali, a cura do peso de seu espírito se encontraria naquelas letras. Por acaso, contou o número de caracteres de seu parágrafo inaugural: 666.

Arregalou os olhos, pôs a mão na boca, sentiu um calafrio percorrer seu corpo inteiro. Olhou para os lados tentando procurar testemunhas para aquele fenômeno no vazio do seu quarto. Ficou maravilhado com a magia daquela situação. Estaria aquele texto tão carregado de negatividade assim? Sentiu-se meio bruxo, deu um sorriso indecente. Rapidamente recuperou-se e se deu conta do assombro. Ele estava invocando o diabo com aqueles sentimentos e palavras tão hostis! Não que acreditasse em deuses ou demônios... Não custava nada "respeitar", não é mesmo? Foi tomado de paranóia.

Levantou da cadeira, buscou um copo de água, percebeu seus dedos trêmulos. Ficou de pé diante da tela, olhando assustado, como se tivesse cometido algum crime. Ele suava, suava e pensou até que ia chorar também. E se dali ele firmasse um pacto que rendesse um best-seller? Mentalmente pediu perdão à sua mãe, sua avó, seu pai e a todos os seus princípios morais. Viu-se numa encruzilhada.

Lembrou-se então do teor do texto. Que lixo! O roubo do chifre de unicórnio e amantes se perdendo... Onde estava a beleza disso? Queria apenas descontar uma dor-de-cotovelo, mas que o fizesse em grande estilo, não assim. Percebeu que sua ira havia passado, já até se ria daquela bobagem...

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