Ficç?o também é Verdade

Essas s?o experiências liter?rias, comprometimento com idéias verdadeiras, nem sempre originais, que saltam da cabeça e se transformam em palavras.

 
 

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segunda-feira, maio 27, 2002
 
Perfeição

Sentir a maciez das mãos perfumadas daquela mulher em seu rosto era todo o aconchego do mundo. Nunca conseguia divisar bem o sua face, mas reconhecia muito bem todos os seus cheiros. Apesar do que é mais fácil pensar, não era o cheiro de leite o que ele preferia. Seu coração explodia de alegria ao sentir o mais leve afago do calor daquela pessoa. Deitar em seu colo era um paraíso tão palpável, que ele nem conseguia saber quando dormia. Tentava até manter-se acordado, de olhos abertos para apreender as feições da mulher, sentir por mais tempo o seu perfume, mas seu corpo inteiro era tomado de uma calmaria tão intensa, que a cabeça pesava sobre peito dela e a doçura de sua voz fazia tudo embaçar e se confundir em sono. Mesmo sem saber o que era beleza, ele tinha a certeza de que ela era a criatura mais linda sobre a Terra, mesmo sem conhecê-la, sabia que aquilo que existia entre eles iria durar para sempre - indissolúvel. Era com esse sentimento perfeito que ele levava seus dias. Acordar e não sentir a sua presença era um desespero louco. Mundo se acabava, era a frieza da solidão sem fim. Despudorado, ele se esgoelava, de olhos fechados como se não quisesse encarar o que o mundo lhe reservava, suas cordas vocais vibravam ensurdecedoramente. Pés e mãos se debatiam em descontrole, somente seu berro ecoava no ar! Até que lhe alcançassem as mãos macias e cheirosas... E aquele vestido de malha suave envolvendo uma voz doce, dizendo coisas incompreensíveis. Sem querer ele calava imediatamente e sem sentir perdoava de imediato aquela ausência. Sem se dar conta, e já estava sorrindo. A palavra que ele procuraria durante meses e meses para descrever tudo aquilo era mamãe.

quinta-feira, maio 23, 2002
 
Tenho visto que há pessoas visitando o blog, mas quase ninguém tem feito comentários, nem positivos, nem negativos. Todo mundo tem um pequeno crítico dentro de si e eu estou oferecendo um lugar para libertá-lo. Ah, e agradeço às pessoas que deixaram-no correr solto pelos e-mails e comentários. :)

segunda-feira, maio 20, 2002
 
O Rasgo

Caminhava pelas ruas desertas da madrugada do Centro Histórico. A água acumulada nas frestas entre as pedras do rude calçamento maculavam seus pés com imundice gelada. Sua nudez, disfarçada pelo vestidinho de tecido ordinário, não guardava mais nada além do próprio sangue seco que a sujava entre suas pernas. Em sua face, a secura das lágrimas enrugou sua pele uns vinte anos. Naquela noite, aos nove anos, ela não havia sido feita mulher num daqueles becos escuros. Foi feita indignidade.

A solidão incerta de seus passos era pura desesperança. Os olhos eram uma palidez de quem não compreendia o assombro. O corpo de Marcele dormia para sempre, não mais lhe pertencia, calava. Era incompreensível que a mão grande e protetora de um homem de uma hora para outra se tornasse mordaça. E a crueldade de despedaçar invisivelmente um corpo tão frágil.

Naquela noite Marcele não dormiu, vagou à mercê e proteção da noite. Pela manhã, ela não conseguiu mais vender doces. Nem doar a doçura de seu sorriso.

sexta-feira, maio 17, 2002
 
À espera de um milagre

Quando entrei no cinema, a sala ainda estava completamente vazia, assim eu pude escolher o melhor lugar de todos: centro da sala, centro da fila. Nem longe, nem perto demais. Os olhos estariam completamente à vontade para assistir ao filme. Mal sentei, outras pessoas começaram a entrar e, ao apagar das luzes, a sala já estava lotada. Ainda sobrava um lugar ao meu lado, onde eu deixava minha bolsa e, quando percebi a grande quantidade de homens que entrava, secretamente rezei para que um desconhecido atraente sentasse ali.

Um jovem que me pareceu interessante ocupou o tal lugar. Não conseguia ver se era bonito ou não apenas com a luminosidade da tela. Também não tinha coragem de olhar diretamente para seu rosto, mas meu coração se encheu de expectativa. Dividimos o mesmo braço da cadeira e era como se o conhecesse há tempos, não me irritava a sua característica de estranho. Sentia como se estivéssemos juntos assistindo ao filme e, como nunca na minha vida, fiquei inquietíssima na poltrona. Tudo para chamar a atenção do desconhecido.

Me mexia o tempo todo, os braços, as pernas, a cabeça, tentava olhar suas feições. Minhas reações ao filme eram exageradas, oferecia as pernas nuas para que ele tocasse, deixava minha mão ao alcance. Em alguns momentos parecemos rir juntos e tudo que eu esperava era aquele toque, com grande anseio. Num determinado momento, sua perna (ou a minha?) esbarrou na minha (ou na sua?) - seria algum sinal? Muito pouco. O que eu esperava mesmo era sua mão inteira - palma, calor e todos os dedos - sobre a minha coxa, acompanhados por um sorriso.

Sentada ali, ao lado daquele rapaz, eu sofria aguardando o afago que não tinha por que vir. E não veio mesmo. Em nenhum instante das duas horas de projeção nossas peles se tocaram. Meu braço esteve o tempo todo projegido pelo casaco e sua perna, pela calça. Ao final da seção, ele virou-se de costas e tomou outra direção. Nem mesmo consegui ver o seu rosto.

terça-feira, maio 14, 2002
 
Baby Doll

Quando Pira acordou e viu ao seu lado uma garota magra, com seu batom borrado na boca, vestígios de delineador e envolta por seu vestido, se desesperou. Levantou-se devagar do colchão de casal quase desforrado, não queria fazer barulho, seus olhos arregalados. Ela caminhava somente de calcinha, tentando catar partes de sua roupa pelo chão. Procurou por Ricky, dono do apartamento, e assustada, trancou-se no banheiro com o telefone sem fio. Ligou para Bela, sua amiga careta que sempre lhe dava uma força.
- Me acode!
- O que foi mulher? Fala mais alto!
- Num posso, tou assustada...
- Você, assustada???
- Porra, tou na casa do Ricky e tem uma mulher comigo na cama...
- E daí?

Pira é bem liberada. Todo final de semana cai na farra, usa algumas drogas e sempre amanhece na cama com alguém diferente. Nunca tinha dormido com uma mulher, mas sempre teve vontade. Muitas vezes acordava na casa de seu amigo Ricky, mas nunca haviam transado. Ele é uma dessas figuras andróginas da noite, provavelmente gay. Aliás, ela nunca o tinha visto com jeito de dia, uma vez que se conheceram na night e parece que ele já levanta produzido, óculos coloridos, cabelo penteado, e aquelas indefectíveis roupas clubbers.

- Daí que eu acho que tive minha primeira experiência homo e não lembro!
- Como não?
- Não sei o nome da menina, não lembro nem SE aconteceu...
- Você exagerou dessa vez. Até onde você se lembra?
- Até mais ou menos umas 2 horas da manhã, dançando lá na Laser Babes.
- Tá complicado mesmo. Tem uma lacuna de umas doze horas aí...
- Putz! Estou me sentindo super mal. Seria ridículo virar pra criatura e perguntar "nós transamos?"
- Com certeza...
- E não saber o nome então? Eu sou uma canalha!!!
- O melhor que você tem é sair daí. Pergunta ao Ricky depois...
- Ela tá com meu vestido.
- Veste qualquer roupa e sai daí.
- Tá bom.

Pira saiu do banheiro péantepé, achou suas meias, sapatos, e bolsa. Catou uma camiseta e o que parecia ser uma cueca samba-canção de Ricky. "Droga, eu adorava este vestido", olhou para a garota que repousava suave em sua roupa. Procurou o dono da casa mais uma vez e nem sinal. Sentindo-se estranha, desapontada por não recordar nada de uma experiência tão singular, bateu a porta atrás de si e foi embora.

Coisa de meia hora depois, Ricky desperta e ri dos próprios trajes. Na sua boca ainda reside o gosto de Pira.

segunda-feira, maio 13, 2002
 
No surprises

Eram amigos há alguns anos. Ele fazia engenharia e ela queria ser atriz de teatro. A menina tinha idéias maluquinhas, ele a acompanhava e sempre se divertiam. Assistia às suas apresentações, às vezes ficava tocado, muitas vezes indiferente, mas sempre sorria quando ela pedia suas críticas. Pediam muito pouco um do outro e assim se entendiam muito bem.

Naquela manhã ela ligou para sua casa e o chamou para olharem o céu. Sem se perguntar muito o porquê, ele terminou de resolver suas coisas e foi. Poderiam ver o céu de qualquer janela, mas ele foi encontrar com a menina. Chegando no prédio dela, foram ao playground. Já era tarde e o prédio fazia uma sombra cheia de brisa. Ela mandou que deitassem no chão, numa distância suficiente para estenderem os braços. Deitaram com os rostos para cima. As nuvens passando por detrás do prédio davam a impressão de que ele estava caindo.

Ela disse "Vira a palma das mãos para cima, recebe o céu todo na cara e o prédio direto no peito!" e eles riram. Ficaram assim por muito tempo, conversando sem se olharem, apenas o azul do céu penetrando em seus olhos. As pessoas os olhavam das janelas, era estranho. Às vezes suas bocas se abriam num riso, em outros momentos suas expressões ganhavam gravidade.

Permaneceram imóveis, e quando se deram conta, suas mãos se tocaram. Os dedos se entrelaçando, se afagando, um verdadeiro abraço de mãos. Só então eles se olharam. Então perceberam que se amavam. Sem sobressaltos, eles se amavam.

Foi simples assim, ficaram de mãos dadas e nada aconteceu enquanto o céu caía sobre suas cabeças.